Carta Capital: A sangue frio
O ar-condicionado do plenário Nagib Haickel não arrefecia a tensão entre os deputados maranhenses reunidos na sessão de quarta-feira 25. Dedos em riste, levavam para a sala climatizada a temperatura de uma manhã quente e abafada, típica do outono em São Luis.
O motivo era a
votação de um projeto para batizar uma avenida da cidade com o nome de Jackson
Lago, o ex-governador morto no ano passado e que durante anos combateu a
família Sarney – um projeto que em qualquer outra parte do mundo seria tema
para vereadores, e não deputados.
O blog do jornalista Décio Sá, morto na segunda-feira 23
A aprovação da homenagem seria uma afronta ao padroeiro,
representado ali pela base aliada da filha, a governadora Roseana (PMDB), e
pelas palavras de sua lavra cravadas na parede frontal do plenário: “Não há
democracia sem Parlamento livre – José Sarney”.
Não parecia o mesmo plenário que, um dia antes, levou
praticamente toda a Assembleia Legislativa do Maranhão a vociferar contra o ato
de barbárie cometido contra Décio Sá, o blogueiro mais conhecido do Maranhão –
e, até a noite de segunda-feira 23, um jornalista praticamente intocável.
O crime acontece exatos 15 anos após a morte de um delegado,
Stênio Mendonça, que chocou a população maranhense e deu início à CPI do Crime
Organizado – e anos depois resultou em prisões e na cassação de deputados
maranhenses. Pura ironia: foi durante a cobertura da CPI que Décio e outros
jornalistas da mesma geração, formados na metade dos anos 1990 na Universidade
Federal do Maranhão, consolidaram o nome da mídia local.
A indignação dos deputados deu espaço, no dia seguinte, à
acalorada discussão sobre o nome da avenida. Aquela bolha de ar climatizado a
tapear a alta temperatura afora era só o primeiro sinal do descompasso entre a
realidade e a política da região.
Uma volta de dez minutos por São Luis é suficiente para
perceber que havia assuntos mais urgentes a serem discutidas no plenário: da
saída do aeroporto até a avenida Litorânea, onde o jornalista foi alvejado, o
índice de desenvolvimento humano oscila como se o veículo circulasse entre o
Sudão e a Suécia em poucos minutos.
Fora do belo prédio espelhado da Assembleia, a preocupação
não era com os nomes a serem colocados na avenida: era a ação de grupos de
extermínio a um estado já assolado pela miséria e insegurança.
O estado emprega um policial para cada grupo de 800 habitantes
(a média brasileira é de um para 300).
No campo, onde a atuação policial é
ainda mais limitada, a situação chega a ser assustadora: nas contas da Comissão
Pastoral da Terra, nada menos do que 85 pessoas estão hoje ameaçadas de morte
em razão de conflitos agrários em 29 municípios. No estado, 121 pessoas foram
assassinadas desde 1985. Até hoje, apenas dois casos foram julgados, e nenhum
dos mandantes está preso.
Crimes por encomenda. O caso de Décio se somou a uma
série de assassinatos ocorridos desde outubro do ano passado. Naquele mês, um
empresário foi morto por reagir a uma tentativa de grilagem de um terreno de
sua propriedade numa das áreas mais valorizadas de São Luis. Com um tiro na
nuca, foi encontrado enterrado numa cova rasa aberta em seu próprio terreno.
Pouco depois, dois irmãos, empresários de um grupo
petroquímico, foram mortos por um motoqueiro que fugiu. Cerca de 15 dias atrás,
um suposto traficante conhecido como Rato 8 (em referência aos oito
assassinados dos quais era suspeito) morreu numa emboscada montada por homens
armados dentro de um carro a cortar a mesma avenida onde Décio seria alvejado.
Outro crime da série foi registrado no município de
Buriticupu, onde o líder rural Raimundo Borges foi morto com cinco tiros
disparados por um motoqueiro. Em nenhum caso os mandantes ou executores foram
presos, embora a polícia garanta que as investigações estejam avançando.
“Isso virou uma prática comum. Agora todos se deram conta da
situação porque aconteceu com o Décio, uma pessoa conhecida da cidade”, afirma
Diogo Cabral, advogado da CPT e secretário da Comissão de Direitos Humanos da
seccional maranhense da Ordem dos Advogados do Brasil.
Dessa vez os tiros acertaram um aliado do grupo que se
reveza no poder do estado há pelo menos 40 anos. Décio Sá era notadamente um
jornalista alinhado com a família Sarney – à boca pequena, colegas contam que
ele era o único jornalista do estado a ter acesso à área VIP de Roseana Sarney
na Sapucaí durante o desfile em homenagem a São Luis feito pela escola samba
Beija-Flor.
Ex-correspondente da Folha de S.Paulo e depois
colunista de O Estado do Maranhão, o diário da família Sarney, Décio
colecionava inimigos devido à exposição de uma certa incontinência verbal em
seu blog, um dos primeiros do estado. Por causa dele, transformou-se em persona
non grata em muitos círculos – que, no Maranhão, se agrupam de forma bem
delineada entre os amigos e inimigos dos Sarney.
No ano passado, não ousava aparecer na Assembleia
Legislativa, onde policiais em greve acampavam como protesto. De sua
trincheira, Décio emendava petardos em direção aos grevistas, que podiam ver o
diabo na frente, mas não o blogueiro. Da mesma forma, evitou acompanhar o
resultado da eleição para governador em 2006, quando Jackson Lago foi eleito.
Do lado de fora do Tribunal Regional Eleitoral, cabos eleitorais prometiam uma
surra no blogueiro caso aparecesse.
O jornalista Wilson Lima, repórter do portal iG e
ex-correspondente de diversos veículos no Maranhão, conta que Décio era
personagem até de charges publicadas nos jornais locais. Tudo por conta de seu
perfil perfil “folclórico”. Numa delas, era retratado como um “homem-bomba” –
um de seus bordões, ao fechar uma apuração, era que iria “detonar” determinado
alvo.
Recentemente, Décio comprou briga até com os ex-colegas da
Folha, atuando, segundo relato do próprio jornal, para derrubar a pauta dos repórteres
que desembarcavam na capital maranhense em busca de noticias contra a família
Sarney.
Em seis anos, se aproximou como pode do clã, mas colecionou
inimizades pontuais a cada novo post. Nesse tempo, ele comprou briga até com
cego que não era cego – quando revelou que um funcionário do Tribunal de
Justiça havia passado em concurso na cota de deficientes alegando ser cego, o
que Décio jurava de pé junto não ser verdade.
Décio era, segundo os colegas, uma pessoa bem relacionada
mas de poucos amigos. Costumava ir para os bares sozinho para tomar suas long
necks e estender o expediente por meio de telefonemas que só cessavam na
madrugada. Um de seus favoritos era o Bar Estrela do Mar, onde foi morto. Ali,
entre um telefonema e outro, ele costumava digladiar com as patas de
caranguejos servidos com vinagrete e arroz de toicinho.
Medo. A reportagem de CartaCapital visitou o
bar 36 horas após o crime. Apesar do clima de tranquilidade, ninguém ali
parecia disposto a falar sobre o caso: a atendente baixava a cabeça, sem olhar
para o repórter, quando questionada em qual mesa Décio estava sentado quando
morreu. Em plena hora do almoço, o restaurante, um simpático quiosque aos pés
da praia, estava vazio. O único movimento era de curiosos a diminuírem a
velocidade ao passar pela avenida – e o alvoroço dos funcionários ao se reunir
em frente ao aparelho de tevê para ver a fachada do estabelecimento estampada
no noticiário.
Casqueiro (a versão maranhense para “marrento”), como
descrevem os colegas, Décio não relatou, nos últimos dias, qualquer menção às
ameaças. Estava acostumado a desdenhar os comentários mais acirrados que
recebia em sua página eletrônica.
Décio tinha as costas quentes. Prova do prestígio do
jornalista, capa dos principais jornais do Maranhão no dia seguinte, é que
minutos após os disparos, o Bar Estrela do Mar já estava cercado de jornalistas
e autoridades, entre elas o próprio secretário de Segurança Pública, Aluisio
Mendes. A promessa de revide veio poucas horas depois, quando, dizendo-se
chocada, Roseana prometeu capturar os autores do “ato de barbaridade”.
Recuperando-se de cirurgia em São Paulo, Sarney pai também se manifestou. Mesmo
convalescente, condenou a atrocidade (ele não citou as demais vítimas do
desmando no estado) e declarou: o crime “atentava contra a democracia”.
Desmoralizada, a polícia prometeu um prêmio de cem mil reais
para quem encontrasse o autor dos disparos. Não explicitou o assassino deveria
ser encontrado vivo ou morto.
Conflitos de terra. Queima de arquivo, vingança, “bode
expiatório”. O que não faltam, em São Luis, são palpites sobre as razões do
assassinato. Em seus últimos posts, o blogueiro havia noticiado irregularidades
na prefeitura de Turilândia, a prisão de assessores do Tribunal de Justiça,
irregularidades em prefeituras do interior e a suposta participação de
parlamentares em exploração sexual.
Mas a hipótese mais provável, levantada pelos próprios
colegas de trabalho, é que a morte esteja relacionada indiretamente ao universo
dos conflitos agrários. Dias antes de ser morto, Décio havia publicado
reportagens contra um empresário de Barra do Corda, cidade do interior
maranhense, suspeito de assassinar um líder rural. O empresário é filho do
prefeito da cidade e iria a júri se não fosse uma estranha notícia publicada na
véspera pelo blogueiro: quase todos os integrantes do júri eram ligados à
família do acusado.
A publicação, com nome e “parentesco” dos jurados, melou o
julgamento, afinal transferido para a capital – onde imagina-se que o
empresário terá menos chances de sair ileso.
Quando foi atingido, Décio falava ao telefone com o
vice-prefeito de Barra do Corda, Aristides Milhomem. Não parecia preocupado com
possíveis ameaças: sentado numa cadeira do corredor próximo ao banheiro, estava
desprevenido, de costas para a avenida, à espera de dois amigos: o também
blogueiro Luis Cardoso (anti-Sarney) e o suplente de vereador Fábio Câmara,
assessor da secretaria de Saúde do Maranhão.
Entretido ao telefone, Décio não
deu importância ao sujeito que desceu de uma moto à sua procura. Sem capuz ou
óculos escuros, o que leva a polícia a suspeitar de que fosse um forasteiro, o
assassino percorreu o corredor estreito do bar e conferiu onde estava o alvo.
Passou por ele na ida ao banheiro. Na volta, deixou a encomenda: seis tiros
disparados com uma pistola calibre 40, de uso da polícia. Em seguida, fugiu a
pé, protegido pela ausência de câmeras de monitoramento ou policiamento.
Para despistar, cortou os barrancos de areia que serpenteiam
a avenida e escondem os luxuosos prédios de uma área nobre encravada num bolsão
de pobreza. Por ali, as únicas testemunhas eram um grupo de evangélicos a rezar
no morro àquela hora da noite.
Ao saberem do burburinho sobre a morte do blogueiro, a
reação de vários colegas foi a mesma: pegaram o telefone para tentar checar a
notícia com a própria fonte.
Foram longos minutos em que o aparelho, de uso pessoal,
vibrou e berrou em vão numa mesa do restaurante: aos 42 anos, Décio estava ao
chão, com o rosto e o peito cravejado de tiros.
Morreu em combate: em uma das mãos, um outro celular, usado
para trabalho, estava colado ao ouvido.
Instinto. A morte a tiros do jornalista, dentro de um
bar de uma das mais movimentadas vias de São Luis, deixou desnorteado o grupo
de repórteres políticos da região. A sensação, resumida por um deles, era: “se
ele, que era querido pelos Sarney, morreu, imagine nós”.
O medo uniu, talvez pela primeira vez, sarneyzistas e
oposição.
Marco Aurélio D’Eça, blogueiro e colunista político de O
Estado, conviveu com Décio nos tempos de juventude, no bairro João Paulo, e,
anos mais tarde, na faculdade, nas redações e bares para ouvir rock às
sextas-feiras. As esposas são amigas e tiveram filhos na mesma época – a mulher
de Décio está grávida novamente.
Segundo D’Eça, a morte do colega deixou em alerta o grupo de
blogueiros do estado, formado por cerca de dez profissionais que, sozinhos e
com estilo próprio (embora ligados a seus grupos), somam mais audiência que
qualquer publicação local.
“Vou te dizer: estou com muito medo”, diz o jornalista. “No
jornal, nunca recebi processos. No blog, em poucos anos já recebi cinco. Sem
contar as ameaças: gente dizendo que sabe quem você é, o que faz, onde anda.”
Apesar do medo, Gilberto Léda, também blogueiro e repórter de
política, é quem resume o espírito da imprensa maranhense após o golpe: “Todos
estamos assustados, nossos amigos e familiares pedem para a gente ter cautela.
Mas a tendência é não desanimar. Quando a gente escolhe essa profissão, sabe
dos riscos. Corremos riscos por puro instinto”.
No Maranhão, em que pese a influência das oligarquias no
jornalismo, este instinto é quase um ato de coragem: os assassinos, estejam
onde estiverem, estão soltos, protegidos e prontos para a próxima.
Por Matheus Pichonelli
Fonte; Carta Capital